O chapéu preto de aba larga tapava o seu cabelo loiro, olhos
azuis, 1.90 m de altura, calçava salto alto, bem maquilhada, pestanas
postiças, lábios carregados de batôn vermelho vivo e unhas pintadas de diferentes
cores. Tudo em si parecia dizer “o mundo pertence-me” e, sob o olhar curioso de
outros viajantes que se encontravam sob a plataforma de embarque na estação, subiu
elegantemente para o comboio e sentou-se no lugar a que lhe dava direito o
bilhete. Era estrangeira não havia dúvidas...
Outros passageiros entraram enquanto
um casal tipicamente luso se sentava ao lado da estrangeira: ele de barriguinha
que falava por si, bigode farto 1:70 m de altura, sapatos gastos mas
brilhando de tão bem engraxados; ela, de cabelo bem preto, até aos ombros,
roupa preta, 1.60 de altura, lábio superior contornado por alguma penugem que
se deixava ver a quem estava mais próximo. Ambos pareciam pedir desculpa ao
universo por existirem, de tão mirrados e enrugados eram os seus rostos. Apitou
o comboio e a viagem iniciou-se em direção ao Porto. Enquanto a estrangeira abria
um livro cujo título não era visível, o casal conversou e o tema era a
estrangeira alí sentada ao seu lado: mas
que aberração esta estrangeira, porque têm um tamanho tão grande, o que será
que elas comem para o pequeno almoço lá na terra deles, e olha-me aquelas unhas
todas pintadas que horror, estas estrangeiras são umas desavergonhadas; deixa a
mulher em paz, dizia o marido; mas
qual quê, insistia ela perante o silêncio da estrangeira, deve ser uma mulher da vida, e olha-me aqueles tacões, e os lábios para
quê pinta-los daquela forma. Por mais
de hora e meia a mulher insistiu nos seus comentários sobre a rapariga estrangeira,
enquanto o marido, resignado à língua afiada da mulher, de quando em vez limitava-se
a um, então lá na terra dela deve ser
tudo assim, o que é que tu queres.... Entretanto o maquinista anunciou a
estação de Aveiro, e a menina estrangeira que se mantivera em silêncio até ali levantou-se, e em bom português ironizou: pois bem, gostei muito da vossa companhia, desejo-vos continuação de boa viagem, eu saio
aqui. E dito isto partiu em direção à porta do comboio. O casal, sentado e lavado em suores frios, quase precisou de assistência médica tal foi o susto, a surpresa e o embaraço.....